Boletim Mineiro de História

Boletim atualizado todas as quartas-feiras, objetiva trazer temas para discussão, informar sobre concursos, publicações de livros e revistas. Aceita-se contribuições, desde que versem sobre temas históricos. É um espaço plural, aberto a todas as opiniões desde que não contenham discriminações, racismo ou incitamentos ilegais. Os artigos assinados são de responsabilidade única de seus autores e não refletem o pensamento do autor do Boletim.

12.3.08

Número 130





EDITORIAL

Estou particularmente feliz com este número do Boletim. Além da segunda parte do artigo do professor Marcos Lopes, temos um elaborado especialmente para nós, pela professora Helena Campos, especialista em Ferrovias, e que nos fala dos 150 anos da história da Estrada de Ferro Central do Brasil.
Dessa forma, sem mais delongas, deixo vocês se deliciarem com as novas contribuições... E espero que elas sejam o estimulo para outras pessoas também mandarem seus artigos!!!
Bom proveito!

FALANDO DE HISTORIA

150 ANOS DE HISTÓRIA DA ESTRADA DE FERRO CENTRAL DO BRASIL (1858-2008)

Helena Guimarães Campos

Graduada e especialista em História
Mestre em Ciências Sociais
Autora de dissertação sobre os trens de subúrbio da Grande BH
Co-autora de “História de Minas Gerais” (Editora Lê)
Coordenadora do Núcleo Ferroviário da ONGTrem
www.ongtrem.org.br
helenagcampos@yahoo.com.br
(31) 3422-2449/9131-0119

2008 dá início a duas décadas de comemorações. Os 200 anos da chegada da corte portuguesa ao Brasil (1808-2008) logo terão desdobramentos, pois nos próximos anos, cada uma das instituições criadas no Rio de Janeiro para adequar o Brasil à condição de sede do Império Português estarão a comemorar seu bicentenário. Sem dúvida, esse fato é digno de celebrações, pois marca o princípio do processo que levou à constituição do Estado brasileiro.
Contudo, muitas das grandes transformações pelas quais passou o Brasil no século XIX só tiveram lugar a partir da metade do século, quando inovações tecnológicas de toda ordem imprimiram mudanças radicais no cotidiano da população. Chegavam o telégrafo, o telefone, a fotografia, a navegação a vapor, a estrada de rodagem macadamizada, a energia elétrica e outras modernidades. Dentre essas, coube à ferrovia um papel de destaque. E, das muitas estradas de ferro brasileiras, nenhuma teve a relevância da Estrada de Ferro D. Pedro II, que com a República se transformou em Estrada de Ferro Central do Brasil. A comemoração de seus 150 anos de criação em 2008 também enriquece os estudos históricos produzidos nesse ano.

A principal ferrovia brasileira

Terceira ferrovia do país, a Estrada de Ferro D. Pedro II foi inaugurada em 29 de março de 1858. À época, já estavam em atividade a Imperial Companhia de Navegação a vapor e Estrada de Ferro de Petrópolis, conhecida como Estrada de Ferro de Mauá, inaugurada em 30/04/1854, e a Estrada de Ferro Recife ao São Francisco, de 09/02/1858. A primeira fora inaugurada com 14,5 km de linhas e a segunda, com 31,7 km. A EFDPII, partindo da corte imperial, abria ao tráfego 27 km que se multiplicariam para cumprir os termos do seu contrato que exigiam seu prolongamento até o Rio São Francisco, em Minas Gerais (Linha Centro ou linha principal), e até São Paulo (Ramal). Seu traçado estratégico - atendendo à corte e às três principais províncias e depois aos três estados mais ricos da federação e suas capitais - contribuiu para torná-la a principal ferrovia brasileira.
Simplificando a história dessa ferrovia, podemos dividi-la em sete fases que compreendem, inclusive, aqueles períodos em que, já extinta, teve sua malha ferroviária gerida por diferentes empresas:

História da Estrada de Ferro Central do Brasil (1858-2008)

Período Características
1858-1865 Constituída em 1855, a Companhia da Estrada de Ferro D. Pedro II construiu a EFDPII, inaugurando-a em 1858. Até 1865, manteve-se como uma empresa privada.
1865-1889 Em 1865 a EFDPII foi encampada pelo Governo Imperial. Suas linhas que se iniciavam no município neutro do Rio de Janeiro, chegaram a Minas Gerais em 1869.

1889-1941 Com a República, em 22 de novembro de 1889, a EFDPII passou a chamar-se Estrada de Ferro Central do Brasil. Na última década do século XIX, a EFCB teve importante papel na construção da capital mineira.

1941-1957 A EFCB transformou-se em autarquia. Nesse período, marcado por acentuada degradação das ferrovias brasileiras, foi feita a ligação com a linha do Nordeste, na divisa de Minas com a Bahia, em Monte Azul.

1957-1969 A RFFSA, criada em 1957, incorporou a EFCB, junto com outras ferrovias públicas do país. Oficialmente, a Central manteve seu nome até 1969. A RFFSA intensificou a substituição da tração a vapor pela diesel-elétrica.

1969-1996 De 1969 a 1996, a RFFSA passou por diferentes reorganizações administrativas que alteraram a denominação da malha da antiga EFCB, identificada como Divisões Operacionais (1969- 1976) e Superintendências Regionais (1976-1996).

1996... Neste ano tiveram início os arrendamentos de parcelas da malha ferroviária da RFFSA a concessionárias, pelo prazo de 30 anos. Em Minas Gerais, as concessionárias que assumiram a malha da antiga EFCB são a Ferrovia Centro-Atlântica, da Vale, e a MRS Logística, que tem participação da Vale.

O Império da Ferrovia

Os primeiros tempos da EFDPII foram marcados por intensa atividade de construção. Expandindo-se pelo Vale do Rio Paraíba, a ferrovia teria seu traçado semelhante ao da antiga estrada colonial que levava ao porto do Rio de Janeiro as riquezas minerais de Minas. Se pelo Caminho Novo, ganharam o mar, o ouro e o diamante, pela estrada de ferro igual destino encontrou o ouro verde. A gênese da EFDPII foi estreitamente ligada aos interesses da cafeicultura, pois a ferrovia oferecia transporte barato aos tradicionais cafeicultores do Vale do Paraíba. Considerando-se a Lei Eusébio de Queiroz, que colocara fim ao tráfico oceânico de escravos (1850), a EFDPII também liberou os escravos antes empregados nas tropas, para as tarefas agrícolas.
As estações ferroviárias se multiplicavam, assim como os entroncamentos com outras ferrovias, todas alimentadas pelas tradicionais tropas de muares.
A Companhia da EFDPII, constituída para construir e operar a ferrovia, com uma década de existência, era a maior empresa do Império, com capital de 38.000:000$000. Em segundo lugar, estava o Banco do Brasil com 30.000:000$000. Apesar disso, os custos com a construção e com a importação de material levaram a EFDPII a ser encampada pelo governo imperial em 1865. Era o início de uma tradição, pois a história ferroviária registra que muitas estradas de ferro particulares, deficitárias, foram assumidas pelo poder público.
Até essa época, apesar do vantajoso transporte de café e de cargas gerais, mais de 50% da receita da EFDPII era oriunda dos passageiros. Desde 1861 já existiam os famosos trens de subúrbio do Rio.

A Central do Brasil em Minas Gerais

A história da ferrovia em Minas Gerais começou quando a EFPDII atingiu a província em 1869, em Chiador, no Ramal de Porto Novo da Cunha. A Linha do Centro da EFDPII, vencendo a Serra da Mantiqueira, se prolongou pelo território mineiro, passando por Juiz de Fora (1875), Santos Dumont (1877), Barbacena (1880) e, até alcançar Conselheiro Lafaiete (1883), foi construída em bitola (distância entre os trilhos) de 1,60m. Como a construção inicialmente estivera a cargo de ingleses, a adoção dessa bitola justifica-se pela necessidade daqueles empresários de se desfazerem de toda a parafernália ferroviária que não fosse adequada à medida de bitola então padronizada em seu país de origem: 1,435 m. Como conseqüência dessa padronização, o imperialismo inglês construiu, mundo afora, ferrovias de variadas bitolas, pois locomotivas, vagões, carros de passageiros, pontes e outros equipamentos ferroviários dimensionados para uma bitola não são reaproveitados em outra. Um dos maiores autores sobre a história de ferrovia tupiniquim, Ademar Benévolo, em Introdução à História Ferroviária do Brasil, de 1953, relatava que o Brasil pagou por muitas pontes “velhinhas em folha”, pintadas, com cara de novas.
A partir de Conselheiro Lafaiete, a EFDPII seguiu o Vale do Rio das Velhas, em direção ao Rio São Francisco, em bitola de um metro. A razão da mudança era simples: economia. Com a via mais estreita, todos os custos eram reduzidos: cortes, aterros, dormentes, trilhos, lastro, material rodante, pontes e outras obras de arte - tudo era mais barato. Claro que havia desvantagens, pois os trens da bitola de 1,60 m são mais largos e transportam mais cargas e passageiros. Contudo, a principal desvantagem dessa quebra de bitola foi a necessidade de se fazer baldeação, ou seja, transferir passageiros e cargas de um trem para outro. Em muitos trechos, posteriormente, foi adotada a bitola mista que é a formada por três trilhos, permitindo o tráfego de material rodante de ambas as bitolas.
A EFDPII lançou um ramal para atender à capital da província mineira, Ouro Preto (1888). Estendidos esses trilhos, em 1926, eles alcançariam Ponte Nova. Margeando o Rio das Velhas, a Linha do Centro atingiu Itabirito (1887) e, quando as obras estendiam-se dessa cidade até Sabará, veio a República. Como a principal ferrovia do país não podia homenagear o titular do império que naufragava, uma semana depois do golpe que instituiu o novo regime, a ferrovia teve seu nome alterado para Estrada de Ferro Central do Brasil. Como EFCB, novas inaugurações: Rio Acima (1890), Raposos (1891), Sabará (1891), Santa Luzia (1893), Vespasiano (1894) e Pedro Leopoldo (1895).
A primeira Constituição republicana de Minas Gerais (1891) determinava a construção de uma nova capital. Para transformar o Arraial Belo Horizonte em uma cidade digna de sediar o governo de Minas, a Comissão Construtora da capital tratou, primeiramente, de viabilizar o transporte dos materiais, grande parte, oriundos da Europa. Em 1895, inaugurou o Ramal Belo Horizonte, uma linha de 14 km que ligava General Carneiro, em Sabará, aos canteiros de obra. Com o Ramal, o material importado chegava ao porto do Rio de Janeiro, embarcava na estação de Marítima e seguia até a futura Cidade de Minas, que só em 1901 passaria a se chamar Belo Horizonte. O Ramal foi vendido à União em 1899 e incorporado à EFCB. Nele se destacavam as estações de General Carneiro, de formato triangular, demolida na década de 1960 e a Estação de Minas que foi demolida em 1920, para dar lugar à atual, que abriga o Museu de Artes e Ofícios. Digna de nota também, apesar de pouco conhecida, é a primeira casa de moradia construída no âmbito da nova capital. Essa casa, destinada ao agente da estação de General Carneiro teve sua construção iniciada em 1894. Hoje, restaurada, nela funciona o Centro Vocacional Tecnológico, que promove a inclusão digital da população do bairro sabarense.
Seguindo o Rio das Velhas e mirando o São Francisco, na Linha do Centro, continuaram as inaugurações: Sete Lagoas (1896), Cordisburgo (1903), Curvelo (1904), Corinto (1906), até que em 1910, a EFCB alcançou Pirapora. À época, cogitava-se levar os trilhos até Belém e, para isso, a ferrovia construiu a belíssima ponte Marechal Hermes. Contudo, frustrando os planos de integração do território nacional por meio dos trilhos, só 2 km de linhas foram assentadas, até Independência, depois Buritizeiro (1922).
Corinto se transformou em um importante entroncamento, pois no sentido oposto ao de Pirapora, foi construído um ramal que atingiu Diamantina em 1914. Em direção norte, também foi lançada uma nova linha que alcançou Montes Claros em 1926, para depois estender-se até o limite de Minas com Bahia, na cidade de Monte Azul (1947). Pela quilometragem mais extensa e pela relevância estratégica, a linha Montes Claros-Monte Azul passou a ser considerada parte da Linha do Centro que, tendo seu quilômetro zero na cidade do Rio de Janeiro, chegava à divisa de Minas com a Bahia.
Em 1950, a ferrovia do Nordeste, Viação Férrea Federal Leste-Brasileiro, completou a ligação em Monte Azul, integrando os trilhos das regiões Sudeste e Nordeste. Por estas linhas, durante décadas, no “Trem do Sertão” ou “Trem dos Baianos”, viajaram os retirantes da seca que buscavam uma vida melhor nos grandes centros do país ou faziam o caminho de volta, desiludidos com a cidade grande.
A EFCB teve muitos ramais e linhas em Minas: Ramal de Lima Duarte (de Benfica a Lima Duarte); Ramal de Mercês (de Santos Dumont a Mercês); Ramal de Morro da Mina (de Conselheiro Lafaiete a Morro da Mina); Ramal de Ponte Nova (de Miguel Burnier a Ponte Nova); Ramal de Belo Horizonte (de General Carneiro a Belo Horizonte); Sub-Ramal de Matadouro (de Horto Florestal/BH ao Matadouro/BH – atual bairro São Paulo); Ramal de Nova Era (de Sabará a Nova Era); Ramal de Diamantina (de Corinto a Diamantina); Ramal de Pirapora (de Corinto a Buritizeiro); Variante Barbacena-Carandaí; Ramal de Porto Novo da Cunha e Ramal de Santa Rita de Jacutinga (que penetravam em território mineiro). Sem dúvida, o mais importante Ramal da Central em Minas foi o do Paraopeba (de Joaquim Murtinho a Belo Horizonte), que permitiu à capital mineira, já servida pela bitola métrica, contar também com a bitola larga.

Esquema das linhas da EFCB (1958).
Fonte: IBGE. Ferrovias do Brasil. 1956, p. 217.

A era da RFFSA

Ao ser criada em 1957, a RFFSA, integrou as diferentes ferrovias públicas do país. Nesse conjunto, a de maior quilometragem era a Rede Mineira de Viação, seguida de perto pela EFCB, que, contudo, era a mais importante. Seu nome já informava sobre sua relevância: era o centro ferroviário do país. Com ela entroncavam-se a Rede Mineira, a Leopoldina, a Leste Brasileiro, a Vitória a Minas, a Campos de Jordão, a Santos a Jundiaí, a Morro Velho e outras ferrovias particulares, além das companhias de navegação do Rio São Francisco.
Com o seu traçado e a abrangência ampliada pelos entroncamentos, as cargas e os passageiros da Central eram bastante diversificados. Líquido ou sólido, vivo ou inanimado, são ou enfermo, inofensivo ou perigoso, frágil, repugnante..., tudo e todos iam de trem para qualquer lugar.
Os passageiros viajavam conforme o bolso: de 1ª ou de 2ª classes (nos tempos da EFDPII, quem não tinha sapatos, viajava de 3ª classe). E havia trens de variadas categorias: rápidos, expressos, diretos, noturnos, subúrbios e mistos. Alguns viraram lendas: o luxuoso Vera-Cruz, o sofrido Trem do Sertão, o bucólico Subúrbio BH-Rio Acima...
Fotografia de políticos do Partido Republicano Mineiro (PRM) na estação de Belo Horizonte. Enquanto não teve a concorrência da rodovia, a estrada de ferro foi o único meio de transporte da população. Geralmente, as estações eram os locais mais movimentados das cidades e, nelas tinham lugar calorosas boas-vindas e animados “bota-foras” de anônimos e de celebridades. A fotografia que mostra políticos do Partido Republicano Mineiro (PRM) na estação de Belo Horizonte, em 1915, associa dois marcos da identidade mineira: o trem e a política.
Fonte: Revista Vida de Minas. Belo Horizonte: 15 jan. 1915. nº 2.

As décadas de 1960/1970 trouxeram grandes mudanças, aprofundadas nos anos de 1980. O incremento da mineração e da siderurgia, maiores investimentos nas rodovias e na indústria automobilística, a crise de combustíveis, a explosão demográfica, a forte urbanização, a conformação da Região Metropolitana de BH, a pauperização da população...
Aos poucos, o perfil dos transportes nas antigas linhas da Central se especializou para atender, principalmente, aos interesses da mineração e da siderurgia. Trens enormes, tracionados por mais de uma locomotiva diesel-elétrica, fizeram da principal linha da Central um “mineroduto”, expulsando, gradativamente, os incômodos passageiros que migravam para o transporte rodoviário, mais rápido, porém caro. A política para passageiros era clara: transporte de massas em grandes centros urbanos. Surgiu a Companhia Brasileira de Trens Urbanos e, com ela, o pós-moderno trem de subúrbio - o metrô de superfície - com uma timidez da qual ainda não se refez. Vai ver – coitado! - pesa-lhe o título de trem metropolitano, quando na verdade, não passa de um excelente trenzinho urbano, restrito aos limites da capital.

Tempos modernos

Não se pode esquecer que a Central tinha uma característica marcante. Não era uma estrada de ferro. Eram duas. Uma de bitola larga, outra de bitola métrica. E cada uma delas tinha vida própria. A RFFSA, reconhecendo essa realidade, tratara de dividi-la em 1969. Quando veio a década declaradamente neoliberal, a de 1990, a RFFSA foi fatiada e arrendada a concessionárias. As linhas da bitola larga da antiga Central do Brasil couberam à MRS Logística e, as métricas, à Ferrovia Centro-Atlântica.
Novamente sob gestão privada, as linhas da EFCB que foram mantidas e exploradas atingem índices inéditos de produtividade. Em alguns contextos, parece que enfim, a moderna ferrovia brasileira alcança os padrões de primeiro mundo. Contudo, a privatização foi implacável com os passageiros. Licenciado somente o transporte de cargas, aos passageiros restam hoje os trenzinhos turísticos, de percursos mínimos e em linhas não operacionais para a carga.
Não é à toa que, em Minas, estado de forte tradição ferroviária graças à sua extensa malha, abundam as estações transformadas em centros culturais. E, em muitos desses “centros de saudade” sequer há um parafuso, uma fotografia, um objeto que permita às novas gerações associá-los a um passado rico em memórias de bilheterias e plataformas agitadas, de sonoros apitos de trens, de guarda-pós para proteger da fuligem da maria-fumaça, do burburinho das conversas no interior dos trens...
É de se esperar que em todo o Brasil, e em Minas especialmente, os 150 anos da Central do Brasil suscitem muitas reflexões não só sobre o passado da ferrovia, mas também sobre o presente e o futuro dos trilhos, da economia, da cidadania. É sorte bem melhor do que a que teve a RFFSA que, ao completar 50 anos em 2007, extinta pelo Plano de Aceleração do Crescimento, foi sepultada em meio a um silêncio constrangedor.

BIBLIOGRAFIA

CONTADORIA GERAL DOS TRANSPORTES (CGT). Guia geral das Estradas de Ferro e Empresas de Transporte com elas articuladas – G-1. Rio de Janeiro: 1960.


BRASIL

O curriculum mortis e a reabilitação da autocrítica

Leandro Konder
A sociedade, modernizada, precisa de organização, eficiência. Para obter um emprego, para conseguir uma promoção, fazer carreira, o sujeito precisa exibir suas qualidades, ostentar seus êxitos. Já existem até manuais que ensinam o cidadão a preparar seu curriculum vitae. A trajetória ascensional de cada um depende dessa peça de literatura, que lembra as antigas epopéias, porque nelas o protagonista – o herói – só enfrenta as dificuldades para poder acumular vitórias. Os obstáculos servem apenas para realçar seu valor. O passado é reconstituído a partir de uma ótica descaradamente “triunfalista”.
(Do site da Fundação Lauro Campos)
www.socialismo.org.br/portal/filosofia/155-artigo/

NUESTRA AMERICA

A mídia como arma de guerra
por Izaías Almada
Se alguma dúvida existia, para muitos de nós, do papel da mídia no jogo internacional do poder, na estratégia adotada pelo capitalismo neoliberal em manter suas conquistas a qualquer preço e subjugar aqueles que não lêem na sua cartilha, essa dúvida deixa de existir quando se analisa friamente os últimos acontecimentos desta semana na fronteira entre o Equador e a Colômbia.

Um país conturbado há sessenta anos por uma luta político-militar interna, onde mais de 20 mil insurgentes em armas, FARC e ELN, disputam o poder com os sucessivos governos eleitos pela oligarquia. A Colômbia viu, em poucas horas, cair por terra a máscara de país democrático e legalista. E como sua política é determinada fora de suas fronteiras ou, provavelmente, em algumas embaixadas de Bogotá, deixou a nu a estratégia adotada por todos aqueles que não querem a paz interna no país. Ou, pior ainda, que precisam conflagrar a região, ampliar o conflito, com propósitos diversionistas, desviando a atenção para encobrir aquilo que interessa ao Departamento de Estado norte-americano.

Senão vejamos trecho de um relatório feito ao presidente Bush em 30 de julho de 2001 pelo National Energy Police Report e publicado pelo jornal The Nation: “os EUA necessitam garantir para os próximos anos o fornecimento seguro, estável e barato do petróleo”. O relatório avalia que três regiões no mundo têm que ser consideradas nessa perspectiva: o Golfo Pérsico, a Ásia Central e o Arco Amazônico andino, leia-se Venezuela, Colômbia e Equador.

Há, contudo, um significativo parágrafo na recomendação a Bush: “Caso não se consiga o petróleo por meios diplomáticos, devemos introduzir na matéria o nosso aparato militar”.

Golfo Pérsico, Irã e Iraque; Ásia Central, Afeganistão. Aqui, como se sabe, falharam os “meios diplomáticos”. O Arco Amazônico andino, contudo, está localizado no “quintal”, o que não deveria causar maiores embaraços, mas surgiram aqui dois empecilhos: o primeiro, Hugo Chávez, e mais recentemente Rafael Correa. O tradicional golpe de estado foi tentado contra Chávez em 2002, mas também não deu certo.

Idéias de soberania, independência, mercados comuns e construção de alternativas energéticas vão ganhando força entre países como Argentina, Brasil, Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua, Cuba. Cria-se a Telesur, a ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas) em oposição à falecida ALCA, o Banco do Sul, a Petrocaribe, onde países pobres caribenhos podem comprar petróleo da Venezuela a preço mais barato. Um pouco de solidariedade invade os números frios do comércio feito de trocas que só beneficia um dos lados, o mais rico.

Preocupado com os conflitos militares no Iraque e no Afeganistão, com as ameaças ao Irã, com a manutenção de Israel como Estado polícia no Oriente Médio, os Estados Unidos da América perceberam que, a rigor, contam apenas com um governo totalmente submisso na América do Sul: a Colômbia. E talvez já não contem, aqui no seu antigo quintal, só com os “meios diplomáticos” para conseguir o seu petróleo seguro e barato.

Como explicar para o mundo que a invasão do território do Equador pelas Forças Armadas da Colômbia, a que se pretendeu dar um caráter de surpresa, era uma ação preventiva de defesa do território colombiano? E apresentar rapidamente como prova alguns documentos “recuperados” do laptop de um líder guerrilheiro, onde se inferia que 300 milhões de dólares foram dados por Hugo Chávez às FARC, que os guerrilheiros iriam comprar 50 quilos de urânio, que Rafael Correa e Chávez tinham acordos secretos com as FARC, um vídeo onde um soldado, em plano muito fechado, conta dólares supostamente encontrados no acampamento guerrilheiro. Afinal, tudo isso justificaria a ação em território equatoriano. E era preciso que o mundo repercutisse toda a montagem da farsa rapidamente. Rádio, televisão, jornais, internet deveriam espalhar o mais rapidamente possível para as principais capitais européias e para os países da América Latina, em particular, que a Colômbia agiu contra terroristas que até urânio já queriam comprar... (Alguém aí se lembra das armas de destruição em massa de Sadam Hussein?). A mídia foi acionada como arma de guerra, como tem sido usual nos últimos tempos. E com tal violência e precisão que confunde a cabeça de muitos de nós... e chegamos a duvidar das nossas próprias convicções.

Mas em dúvida, sempre podemos nos perguntar:

De onde partiram os aviões e helicópteros que participaram da invasão do território equatoriano e que, pela posição dos disparos, vieram do próprio território do Equador? Seriam da base norte-americana de Manta, cujo contrato não será renovado por Rafael Correa no final de 2008?

Quem dispõe de sofisticada tecnologia de satélites para identificar eventuais telefonemas dados pelo líder guerrilheiro Raul Reyes?

O que foi fazer em Bogotá, dois dias antes do bombardeio ao acampamento guerrilheiro, o contra-almirante Joseph Nimmich, comandante da Força Tarefa do Sul dos EUA?

Onde estaria localizado o laboratório das FARC para enriquecimento de urânio nas selvas colombianas?

Os 300 milhões de dólares que Chávez entregou às FARC teriam sido em cheque ou escondidos em caixas de uísque?

Por quê a imprensa não deu o devido destaque à declaração de um dos últimos reféns soltos pelas FARC, em fevereiro, de que Ingrid Bettencourt, uma vez libertada, se candidataria à presidência da Colômbia?

Teriam Uribe e o Departamento de Estado norte-americano interesse na libertação de Ingrid Bettencourt?

É preciso ter paciência diante de tanta mentira e farsa. Recomenda-se a leitura do livro O Senhor das Sombras, de Joseph Contreras, sobre Álvaro Uribe.

Izaias Almada é autor, entre outros, do livro "Venezuela Povo e Forças Armadas", Editora Caros Amigos


INTERNACIONAL

O biopoder, higienização e simulacros raciais nos Estados Unidos
Por Dennis de Oliveira [Quarta-Feira, 5 de Março de 2008 às 09:49hs] (do site da revista Fórum)

A recente pesquisa do Pew Center, instituição estadunidense especializada em estudos estatísticos, revelou que no início do ano de 2008, 2 milhões e 323 mil cidadãos estadunidenses estavam presos. Isto dá um índice de encarceramento de 1 para cada 99,1 adultos. Para efeito de comparação, no Brasil este mesmo índice é de 1 para cada 315 adultos.
O estudo do Pew Center demonstra que a política de encarceramento como mecanismo de contenção dos atos ilícitos vem custando caro aos cofres públicos. Em média, os governos estaduais gastam 7% do orçamento na manutenção dos presídios. De 1987 a 2007, o aumento nesta rubrica de gastos em todo o país foi de 127%, descontada a inflação do período. Estes custos orçamentários só perdem para educação, saúde e transportes.
Para além da questão econômica - que muitos políticos estadunidenses têm apresentado a solução de privatização dos presídios, com as empresas podendo usar a mão de obra carcerária em uma verdadeira relação de escravidão - há o aspecto político-social desta situação. O que está por trás disto é o aproveitamento de um certo clamor popular pela resposta fácil do aprisionamento como resposta a criminalidae por parte de estrategistas políticos que querem, na prática, estabelecer mecanismos institucionais de higienização e faxina étnica no país.
Vejamos alguns dados: entre os estadunidenses negros, a taxa de encarceramento é de 1 para 15 adultos. Quando se restinge a população para a faixa etária de 18 a 34 anos, um em cada nove negros está preso! Entre os hispânicos, este índice é de 1 para cada 36 adultos. Em outras palavras, há um direcionamento de caráter étnico nos aprisionamentos. Os presidiários perdem todos os seus direitos de cidadania e, em alguns estados estadunidenses, direitos são revogados permanentemente, como o direito ao voto.
Com isto, o sistema jurídico estadunidense tem sido um mecanismo eficaz para levar a cabo uma polítrica de higienização e estabelecimento de um biopoder, nos moldes propostos por Foucault: um sistema que decide aqueles que poderão viver e gozar de todas as possibilidades e oportunidades e os demais que deverão ser excluídos de qualquer possibilidade de inserirem-se no estatuto da cidadania. Dados como este chocam e chamam mais a atenção com a possibilidade real de um candidato negro disputar as eleições presidenciais dos EUA com chances de vitória. Após um governo de cunho nazi-facista ter como um de seus braços fortes uma mulher negra e descendente de latinos (Condolezza Rice), pode nos levar a concluir que ao lado do estabelecimento deste biopoder, há também uma estrutura de simulacros que tenta vender a idéia de um país de oportunidades iguais para todos.
Dennis de Oliveira é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, jornalista, doutor em Ciências da Comunicação, presidente do Celacc (Centro de Estudos Latino Americanos de Cultura e Comunicação) e membro do Neinb (Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro).


ARTE&CULTURA

As Tradições Intelectuais e a Permanência das Obras de Pensamento
(Sobre a noção de Clássico II)

Marcos Antônio Lopes*


Como tentei sugerir no texto da semana passada, as idéias literárias e filosóficas bem como as doutrinas políticas parecem não possuir um início e um término definidos. Sendo assim, vale a máxima cartesiana de que não existe quase nada que não tenha sido dito cujo contrário também não tenha sido afirmado. Com efeito, nada é originalmente antigo ou inteiramente novo. Parafraseando Michel Foucault, as idéias políticas são como “um nó numa rede”. O que se denomina por “Tradição da Filosofia Política” é uma tapeçaria composta por criações intelectuais híbridas e recicladas, que se fundem ao longo do tempo, sem que se possa perceber uma solução de continuidade. A dimensão política, por exemplo, vive em todos os lugares. Ela está presente no interior de determinadas tradições, mas também cria as próprias tradições. Como afirma o filósofo francês Christian Ruby, há, de uma Filosofia Política a outra, “numerosas repercussões — questões renovadas, fontes relidas e transformadas, objetos diferentes vistos com as mesmas palavras e objetos idênticos utilizados diversamente...”.(1) Esses argumentos parecem apontar para a recriação perene da política, bem como para a reinvenção dos enfoques que a fazem girar sobre o seu próprio eixo. Nesse sentido, talvez se possa aplicar o argumento de que, no estudo da política, as perguntas que se formulam normalmente são mais relevantes que as respostas encontradas.

Acreditamos na originalidade histórica do tempo presente, que faz de nosso mundo algo bem distinto das sociedades antigas. Negar tal evidência equivaleria a abolir a historicidade mais elementar inerente à obra de pensamento, em qualquer gênero em que ela tenha sido concebida. De fato, há uma tendência de sempre pensarmos que as nossas idéias, vividas como atualidade, são a máxima realização da história, pelo fato evidente de nos encontrarmos temporariamente na ponta do processo. Isso pode levar a crer que elas desfrutam de uma diferença qualitativa em relação às idéias das sociedades do passado, que estão mais ou menos desvinculadas dos valores antigos, ou melhor, que o maior valor está nas suas criações. Em plena era tecnológica, o homem vive a sensação de uma desvinculação radical com seus antepassados e, apenas uma ou duas gerações passadas, são como alienígenas irreconhecíveis. Um largo fosso foi cavado entre o presente vivido e o passado recente, e quase nada se reconhece das articulações entre ambas as dimensões do tempo. Como disse o historiador Marc Bloch, o homem de hoje conclui de bom grado que deixou de ser determinado pelos do passado. Na observação de Schopenhauer — pouco condescendente com a pretensa superioridade do novo, do atual, do recente —, o que se verifica com o passar do tempo é um empobrecimento da cultura. “A cada trinta anos”, escreveu, “desponta no mundo uma nova geração, pessoas que não sabem nada e agora devoram os resultados do saber humano acumulado durante milênios, de modo sumário e apressado, depois querem ser mais espertas do que todo o passado”. E mais adiante ele retoma o seu argumento em termos mais agudos: “Não há nenhum erro maior do que o de acreditar que a última palavra dita é sempre a mais correta, que algo escrito mais recentemente constitui um aprimoramento do que foi escrito antes, que toda mudança é um progresso. (...) Assim, em geral vale aqui, como em toda parte, a regra: o novo raramente é bom, porque o que é bom só é novo por pouco tempo”.(2)

De fato, o melhor e o pior não passam de convenções limitadas e contingentes, como havia percebido David Hume desde o século XVIII. As tradições que determinam o valor dos costumes e das coisas são frutos multifacetados e contingentes da opinião dos homens. Sociedades que existiram em épocas diversas ou que coexistiram numa mesma “instituição explícita de tempo”, segundo a expressão de Cornelius Castoriadis, tenderam a considerar um objeto semelhante como algo muito distinto ou, pelo contrário, podem focar o que é diferente como um mesmo e único objeto. Na perspectiva do ceticismo relativista de Hume, isso pode significar que não existem parâmetros confiáveis para se estabelecer uma regra que identifique qual é o plano superior das idéias, dos costumes, das culturas. Aliás, esse foi o bem sucedido experimento que Montesquieu levou a cabo em suas Cartas Persas, obra na qual zombou da ultra-sofisticada cultura parisiense setecentista, identificando nela uma criação aparatosa e cheia de adornos, mas nem por isso provida de diferenciais relevantes que a situariam acima das tradições orientais.

Sem dúvida, as obras literárias, como obras de pensamento, permitem-nos refletir sobre o homem em sociedade, aliás, como qualquer outro texto clássico. Ao lermos as Cartas Persas ou o Cândido — o sempre vivíssimo livro de aventuras que Voltaire escreveu em dois dias, conforme diz a lenda — podemos indagar, entre outras questões: quando escreveram estes livros, quais eram os problemas sociais, econômicos ou políticos que afetavam os autores? Com quais questões eles estavam preocupados ao ponto de se engajarem em críticas tão agudas da cultura? Em que medida a inserção do autor em seu próprio mundo histórico permite-nos compreender o seu pensamento e a sua época e, além disso, de que maneira a compreensão desses textos clássicos da literatura ajuda-nos a iluminar alguns problemas em nosso tempo presente? Esses são alguns dados de uma espécie de questionário que qualquer leitor deve formular, para que não se engaje candidamente numa leitura, seja de um romance, seja de uma obra filosófica ou de um livro de história.

As Cartas Persas de Montesquieu e, naturalmente, o Cândido de Voltaire, para ficarmos apenas no plano de obras literárias, levam-nos a desconfiar de certa firmeza panglossiana de algumas de nossas convicções. Não habitamos o melhor dos mundos apenas porque estamos com a vantagem provisória de poder mirar entre o passado e o futuro. A nossa visada sobre os mestres do passado deve incluir a recomendação de Hegel no prefácio à Filosofia do Direito: “a coruja de Minerva só começa o seu vôo quando cai o crepúsculo”. Imagem atraente e, sobretudo, verdadeira, porque viver na dimensão do tempo presente — o crepúsculo a que se refere o filósofo — em qualquer época, permite acessar o que era apenas tendência da história. Então, ao que parece, fica valendo também a regra de Hume: os homens se agarram a escalas de medida que logo se revelam instrumentos ultrapassados. A julgar pelas marchas e contramarchas da humanidade no século passado, e pelas experiências neste que se inaugura, nada leva a crer, segundo imaginou Kant, num “plano secreto da natureza”, que caminha no sentido de um acúmulo de progresso e que nos levará a um bom futuro.

De fato, as sociedades do passado dificilmente se conceberiam como culturas inferiores àquelas que lhes antecederam no tempo. Exemplo tradicional são as concepções renascentistas e iluministas acerca do passado. Aliás, essa não é somente uma orientação ocidental. Como lembra Kenneth Minogue, “Todas as culturas acreditam que suas idéias são as únicas certas, mas as pessoas instruídas são extraordinariamente presas a preconceitos do momento”.(3) Nos séculos XVI e XVII, franceses, ingleses e espanhóis estavam convencidos de serem mais cristãos entre si mesmos e perante o conjunto dos outros povos da Europa, o que lhes conferia, por assim dizer, um atestado de superioridade. O romantismo no século XIX, por influência de Fichte e de outros pensadores, desenvolveu essa concepção a pontos extremos. A identificação dos valores humanos universais em um único povo — as boas na própria nação e as más nos povos adversários — compõe o inventário espiritual do nacionalismo.

O Iluminismo levou a idéia de superioridade do tempo presente a uma amplificação máxima, a ponto de se pensar, com Condorcet, numa escalada inexorável do progresso a partir de um dado momento da história. Parafraseando a célebre máxima hegeliana, a história universal passou a ser a libertação do gênero humano na consciência do progresso. Ora, somos herdeiros diretos do Iluminismo e, apesar de hoje desaconselharmos muitas das suas interpretações mecânicas da história, nosso relativismo ainda não nos impede totalmente de continuarmos pensando que nos encontramos na crista da onda. Entretanto, devemos refletir também que nosso mundo tem origem no passado e que ele tornar-se-á incompreensível para nós se desconhecermos ou ignorarmos os seus componentes antigos. Estudar a história do pensamento político, por exemplo, é analisar, por via indireta, algumas de nossas próprias concepções, sobretudo para sermos capazes de perceber como as adquirimos. Então, ficará mais ou menos evidente que a maior parte dessas concepções não são nossas, no sentido de que pensamos ter sido nós mesmos que as elaboramos. Como todas as demais idéias, as recebemos como herança em meio a nosso processo de desenvolvimento. Sem essa cautela, o conhecimento limitado às causas imediatas dos acontecimentos atuais pode embaçar, e não propriamente iluminar, a menos que seja contrabalançado por uma compreensão aprofundada da história, de seus fatores duradouros e de suas correntes remotas.

Na perspectiva de Leo Strauss, a maior parte das nossas idéias é reprodução abreviada e residual daquilo que pensaram outras pessoas, em outros tempos. A nossa posse sobre elas é e sempre será parcial. Muitas delas já são estruturas opacas, desfiguradas pela própria ação do tempo. Elas sobrevivem ainda, mas já desprovidas do grau de lucidez que possuíram no passado. Para alcançar esse nível de compreensão temos de nos esforçar por compreender as “camadas” de idéias sobrepostas ao longo das tradições culturais da forma como fez o filósofo quinhentista Montaigne, como aparentemente se tratassem de um livro escrito sobre outros livros. Em linguagem metafórica isso significa que necessitamos ver a árvore e, ao mesmo tempo, enxergar também a floresta, o que implica alcançar uma percepção do conjunto que rodeia um ponto específico. Enxergar a floresta implica, pois, saber que somos originais em alguma medida em relação às sociedades do passado, que somos únicos e singulares. Mas isso não pode levar-nos a desconsiderar que nossa sociedade, que nosso tempo, possuem matrizes enraizadas no passado.
Assim sendo, não há dúvida: muitos ideais sobre a política ou outras dimensões da cultura no tempo presente, normalmente concebidos como o fino da originalidade, receberam formulações no passado de maneira bem mais vigorosa. E nenhum exemplo pode ser mais paradigmático a esse respeito do que a Utopia, de Thomas Morus. Depois dele, quantas visões arquitetônicas da república ideal surgiram na história dos lugares imaginários? Difícil contar as linhagens de utopias, em relação às quais o século XIX foi particularmente exuberante na construção de experimentos de toda ordem. Mas, o livro de Morus persiste, até hoje, como o clássico na matéria — “a melhor da utopias”, segundo a visão de um especialista do tema —, por sua abordagem original de um tema que remonta, no mínimo, à longínqua República de Platão.

Em síntese, “os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos”, como definiu Italo Calvino. Assim é que, estudar o pensamento do passado remoto e do passado mais recente é refletir, também, acerca das nossas próprias idéias e concepções. Elas são um legado da cultura, o que significa dizer que as nossas idéias não são tão autênticas e tão exclusivamente nossas, como muitas vezes somos tentados a acreditar, e que elas verdadeiramente não nos pertencem por inteiro. Como afirmou Calvino, o texto clássico “não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber), mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular)”.(4) Um historiador francês — André Siegfried — já dizia, na primeira metade do século passado, que as idéias “voam” ao longo da história: “Por mais profundamente que uma obra se possa prender, por sua origem, às circunstâncias da história, o que nela se encontra de melhor, de mais vigorosamente pensado e expresso, tende sempre a libertar-se, segundo a palavra do grande romancista inglês Charles Morgan, do “objeto do momento”, para alçar, através do tempo, o seu vôo independente”.(5)

Então, os clássicos servem para compreendermos como adquirimos as idéias sobre o nosso tempo. Mas, parece que há um algo mais entre as suas atribuições. Como afirmou o historiador alemão J.P. Mayer, tudo o que fizeram e tudo que aspiraram fazer os homens na história da civilização relaciona-se com seu contexto social. De fato, pode-se estudar essa relação, mas o resultado histórico em si mesmo não se esgota no contato com o ambiente social. Uma obra de arte, por exemplo, não é apenas a expressão de uma determinada situação do artista; é também beleza. E, com essa beleza, entra na história e continua exercendo nela sua influência após já termos esquecido, por muito tempo, a situação social específica do pintor. Para concluir, com Schopenhauer, o autor clássico não pode ser o criador de uma obra que só se dirija aos seus contemporâneos. Para viver na posteridade, “Tem de ser alguém que, mesmo se atravessasse várias gerações, como o judeu eterno, encontrar-se-ia na mesma situação; em resumo, alguém a quem se pudesse aplicar realmente o dito de Ariosto: (...) a natureza o fez, depois perdeu o molde. De outro modo não se compreenderia por que seus pensamentos não devem perecer como a grande maioria dos outros”.(6)

*Marcos Antônio Lopes é professor do Depto. de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina. Pesquisador do CNPq. Co-autor de A peste das almas: histórias de fanatismo (Editora FGV, 2006) e organizador de Idéias de História: tradição e inovação de Maquiavel a Herder (Eduel, 2007). O presente artigo é versão modificada do artigo “O que é um clássico?”, publicado em Mediações: revista de ciências sociais, volume 9, 2004.


Bibliografia

1 Christian Ruby. Introdução à Filosofia Política. São Paulo: Editora Unesp, 1999. p. 10.
2 Arthur Schopenhauer. A arte de escrever. Porto Alegre: L & PM, 2006. p. 19-59ss.
3 Kenneth Minogue. Política: uma brevíssima introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 17.
4 Italo Calvino. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 12.
5 André Siegfried. “Prefácio”. In: Jean-Jacques Chevallier. As grandes obras de Maquiavel a nossos dias. Rio de Janeiro: Agir, 2001. p. 14.
6 Arthur Schopenhauer. A arte de escrever. Op. cit., p. 68s.



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Marxistas nos Estados Unidos, por Ruy Braga
Capitalismo e imperialismo, por Ricardo Musse
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Entrevista: Erik Olin Wright e Michael Burawoy, por Ruy Braga e Alvaro Bianchi
Frederic Jameson analisa as formas de produção simbólica da vida social a fim de compreender seu próprio funcionamento interno

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4. Nas bancas o número 6 da revista Leituras da História. Entrevista com a arqueóloga Silvana Trombeta – Utopia e ficção científica – Crimes insolúveis – O nascer das ruas e pontes de São Paulo – Os literatos do Brasil imperial – Alegorias de nação e diáspora – Padre Vieira.


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1. Seminário discute o Desafio da Paz no Oriente Médio
Quando: 15/03/2008 das 8:00 às 12:00
Onde: Mercure Apartments São Paulo Nortel, Avenida Luiz Dumont Villares, 400, Santana, São Paulo, SP
Informações: http://www.yamaeventos.com.br/oriente/data.html, (11) 2209-4312
2. Informamos a retomada das atividades do Seminário Nacional do Projeto Pensar a Educação Pensar o Brasil 1822 / 2022.

O Projeto Pensar a Educação Pensar o Brasil, tem sido realizado por alunos e professores da Faculdade de Educação, do Departamento de Educação Física e de outras unidades da UFMG; em sua maioria, participantes do GEPHE (Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação). Ele tem como principal objetivo criar um espaço democrático de debate sobre o ensino público no Brasil. Para tanto, desde o princípio de 2007, vem promovendo seminários que têm tentado revelar os significados e as contradições dos discursos sobre a educação no país. Acreditamos que a análise das origens e das alterações em tais discursos é chave para se entender a base do pensamento atual sobre o assunto.

O tema para o seminário nacional desse ano é, As Reformas Educacionais no Brasil: democratização e qualidade da escola pública. A participação é livre e aberta a todos os públicos, havendo a emissão gratuíta de certificados de participação, contendo a carga horária da atividade.

Informações mais detalhadas, acesse o site do projeto: http://www.fae.ufmg.br/pensareducacao

3. UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Divulgação: Concurso Público de Provas e Títulos para provimento de 1 (uma) vaga para o cargo de Professor Assistente em Teoria e Metodologia da História

Área: Teoria e Metodologia da História
Classe: Professor Assistente
Regime de Trabalho: 40 horas – dedicação exclusiva

Edital do concurso Edital Nº 04/2008-R - Concurso Público para Professor de 3º GRAU
CRONOGRAMA DO CONCURSO
Inscrições: 18/2/2008 a 18/3/2008
Realização do Concurso: Provavelmente segunda quinzena de abril

Local de inscrição: Departamento de História – Centro de Ciências Humanas e Naturais – Avenida Fernando Ferrari, nº 514, Campus Universitário – Alaor Queiroz de Araujo – Goiabeiras – Vitória – ES – CEP: 29075-910.
Horário das Inscrições: 9 às 12:30 e 14 às 17:30hs
Tel/Fax: (27) 4009 2507 – Email: dephis.ufes@yahoo.com.br
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PONTOS PARA A PROVA

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8. HISTORICISMO
9. A CONCEPÇÃO MARXISTA DA HISTÓRIA
10. ESCOLA DOS ANNALES E NOVA HISTÓRIA

4. Chamada de Publicação

A Revista ALPHA (ISSN 1518-6792, Qualis B Nacional) está recebendo trabalhos para o seu próximo número (n.º 9/ segundo semestre de 2008), até o dia 21 de junho de 2008, conforme a temática e a resenha abaixo descritas. Maiores informações sobre a revista e normas de publicação encontram-se na página http://www2.unipam.edu.br/alpha/revista_alfa/alpha.php.
Além da temática abaixo, a Revista ALPHA aceita também contribuições de outros temas vinculados às áreas de Letras, História e Educação.


Tema: Vigiar e curar: As doenças na sua relação com as ciências humanas
O tema propõe uma discussão sobre o olhar das ciências humanas – como a História, a Sociologia, a Educação, a Antropologia e a Literatura – sobre o papel desempenhado pela medicina, em especial no que diz respeito ao controle das práticas de saúde pública e privada, bem como sobre a dimensão ética e social das doenças físicas e mentais na investigação da literatura.


Ementa
História das práticas médicas no Brasil e no mundo. A história das doenças físicas e mentais e seu papel no desenvolvimento social e no imaginário das sociedades. O olhar dos médicos sobre o corpo e a alma. O preconceito e as estratégias de segregação dos doentes físicos e mentais. A dor como condição da experiência humana. A doença e a saúde como elementos distintivos das comunidades. As pestes no olhar da Medicina, da História, da Antropologia, da Sociologia e da Literatura. A visão da literatura clássica e moderna sobre as doenças mentais e sobre as doenças físicas como metáfora da dissolução de valores.

Revista ALPHA
Revista da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Patos de Minas
UNIPAM - Centro Universitário de Patos de Minas
e-mail: revistaalpha@unipam.edu.br

5. Revista África e Africanidades
O Espaço África e Africanidades lançará no próximo mês de maio a primeira edição da REVISTA ELETRÔNICA ÁFRICA E AFRICANIDADES que receberá artigos, resenhas e pontos de vista sobre aspectos da História, Cultura e Literatura Africanas e Afro-Brasileiras com publicação trimestral. Os trabalhos recebidos serão avaliados, em um primeiro momento, pelo Conselho Editorial e posteriormente pelo Conselho Consultivo, considerando a clareza e a pertinência do tema abordado, adequação às linhas da revista, o aspecto geral do texto (estrutura de apresentação, clareza da redação, adequação às normas). Os artigos deverão ser inéditos e somente casos especiais avaliados pelos dois conselhos serão aceitos artigos para republicação.Para participar da primeira edição da REVISTA ELETRÔNICA ÁFRICA E AFRICANIDADES que será publicada em maio/ 2008 encaminhe seu material até 15 de abril de 2008. Maiores Informações: www.africaeafricanidades.wordpress.com
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